Confira a transcrição do vídeo com toda explicação:

 

A grande maioria dos bateras aqui no Brasil, e também mundo afora, tem um grau muito baixo de proficiência em leitura. Porém, existem muitos bateras que tocam bem, mesmo lendo pouco. Isso gera uma certa confusão nos bateras, do tipo:

 

“A, mas o baterista tal não lê, então pra que vou perder meu tempo com isso?” Ou: “O negócio é feeling, ler vai me deixar durão, travadão.”

 

Então o que eu vou buscar responder nesse aqui:

 

  1. Primeiro, se essas afirmações fazem ou não sentido e o porquê disso.
  2. Segundo, entender em que situações é mais ou menos importante estudar leitura e quais são os benefícios e possíveis malefícios
  3. Terceiro, tirar nossas conclusões e avaliar as possibilidades do quanto se dedicar a esse tema, o que eu tenho certeza que vai te ajudar a se organizar e fazer uma sábia escolha quando for estudar.

 

A primeira análise que a gente tem que fazer aqui é a relação musicalidade, desenvolvimento musical vs. ler partituras.

 

Um instrumento musical produz uma linguagem não verbal, quando a gente toca a gente praticamente conversa com os outros músicos através da intuição. Efetivamente você não pensa muito em colcheia, semicolcheia, ou rudimentos, como o paradiddle enquanto está tocando. Você usa o que estudou intuitivamente a favor da expressão musical. E é interessante porque é uma conversa sobreposta, todos “falando” ao mesmo tempo. Se te largar pra tocar com uma banda aleatória no Japão, mesmo sem falar japonês, é possível que role uma compreensão mútua e até uma finidade genuína, uma conexão legítima com as pessoas, mesmo sem trocar uma palavra. É uma das belezas da música, não é? 

 

Mas um coisa interessante a se avaliar é que cada músico tocaria de uma maneira, mesmo se tivesse uma partitura, cada batera tem um sotaque e tem a capacidade de transformar completamente o resultado final da música. Ex: no Dream Theater soa exatamente a mesma música com Mike Portnoy tocando, ou com o Mike Mangini? Pesquisa aí no YouTube o Chick Corea tocando com o Dave Weckl e depois com o Vinnie Colaiuta, que tocam até com estilos similares, ouçam se não parece outra música com cada um tocando. E assim é com tudo, com qualquer músico, cada um tem o seu sotaque.

 

Então eu costumo definir o chamado feeling, como essa intuição na hora de se expressar musicalmente, aliada ao sotaque de cada um. Seu feeling é sua intuição aplicada à musica, somada ao seu sotaque. Em uma partitura é possível expressar essa intuição, inclusive é pra isso que ela serve.

 

Se naquela suposta gig com os japoneses, intuitivamente você tivesse feito um groove e um fraseado muito massa e quisesse escrever depois numa partitura, com todas as nuances rítmicas e de dinâmica, seria algo possível e muito legal de fazer. É isso que um compositor faz. Outro batera poderia reproduzir depois o que sua intuição sugeriu.

 

O que não é possível escrever é o sotaque, que é uma parte do Feeling. Então se no Japão ao invés de improvisar o amigo japa tivesse puxado uma partitura de batera, largado pra você todo animado querendo tocar com um batera brasileiro, possivelmente você ainda causaria um impacto diferente de todos os outros bateras que essa pessoa já tocou e entregou essa partitura. 

 

É importante também frisar que nem sempre a partitura é pra ser seguida a risca nos detalhes, na música popular é muito mais um guia de base rítmica, dinâmicas e estrutura musical, todos abertos à intuição e ao sotaque. 

 

Então até aí faz sentido dizer que aprender a ler atrapalha o Felling?

 

Seria como dizer pra um analfabeto que se ele aprender a ler, olha o discurso dele vai piorar, vai ficar sem argumentos, o sotaque vai piorar. Não faz sentido nenhum essa privação, não traz benefícios. 

 

O que faz algum sentido é: tocar lendo ou não tocar lendo? Ser capaz de ler à primeira vista ou não? E aí que é o ponto. É sobre isso que muitos bateras se referem quando dizem que não sabem ler partituras, não é que eles não sabem onde é escrito o bumbo, ou como se toca uma semicolcheia num compasso de 4/4.

 

Muitos estudam com a partitura, ou escrevem partes da música pra estudar e ensaiar, às vezes tocam alguns shows com esse Chart, que seria uma partitura só com um guia básico de estrutura, convenções que banda toda toca junto e mais alguns detalhes, até decorar. Mas preferem tocar sem, ou não se sentem seguros tocando com partitura direto. 

 

Outros bateras podem preferir tocar direto com a partitura, se sentem bem assim. É pessoal, vai de cada um. Porém, é importante entender em que casos é mais importante ou menos ler e se tem benefícios ou até malefícios.

 

O mais importante de todos os casos onde é importante ler à primeira vista: se você tem interesse em tocar música erudita, tocar em orquestras ou big bands. Aí você tem que ser capaz de ler à primeira vista e limitar o seu sotaque.

 

O feeling aí segue uma hierarquia. Primeiro vem o compositor da peça, onde você deve respeitar as expressões que ele gostaria de passar pra música, até porque são muitos instrumentos tocando juntos, se cada um quiser deixar sua marca, vira uma confusão. Depois vem a expressão do maestro, que geralmente é o responsável pelo sotaque da orquestra, e depois vem você. Então aí você discursa tipo jornal nacional. Lê e tenta ser imparcial dando a notícia, não é sua opinião que eu quero, quero que você execute como está escrito. 

 

Outros trabalhos também podem ser assim, escritos respeitando mais o sotaque do arranjador, ou produtor, como no caso dos bateras focados em estúdio de gravação, por exemplo. Alguns músicos, assim como muitas pessoas, são mais capazes de falar em vários sotaques, discursar em diferentes expressões.

 

Então pensa comigo: um músico capaz de tocar fidedignamente, com baixa interpretação pessoal, lendo uma partitura, teria menos feeling que um com uma linda intuição e sotaque, mas incapaz de alterar esse sotaque e se adequar ao que dita a intuição de outra pessoa?

 

Fica a reflexão pra você. O importe ressaltar que todas são habilidades treináveis, tanto a leitura fiel com baixo sotaque, quanto essa maior improvisação e carga pessoal. Algumas são mais naturais que outras, dependendo do indivíduo, mas tudo tudo pode ser desenvolvido. 

 

Outra situação muito importante em que saber ler partituras é essencial, é se você quer dar aulas. É difícil ser um bom professor sem poder ter acesso a nenhum livro de batera ou escrever nada pro aluno. 

 

Isso sem falar que você só vai ser capaz de ensinar pessoas que aprendem exatamente como você, com as mesmas habilidades e defeitos que você. Mas a gente sabe que isso é raro, cada um aprende de um jeito, alguns aprendem muito melhor quando mais introduzidos à teoria, e podem se tornam músicos distintos por isso. Já peguei muitos casos de professor achando que o aluno não aprende, ou aluno achando que é ruim pelo despreparo do professor, que muitas vezes toca bem, mas não é apto a compreender, ensinar e extrair o melhor de diferentes indivíduos com maneiras diferentes de aprender. Claro até aí?

 

Mas então, tem algum malefício de se basear muito no feeling e pouco na teoria? Ou de se basear muito na leitura e teoria e pouco na interpretação pessoal? 

 

A resposta é sim pra duas questões.

 

Quando um músico evita o contato com a teoria e com a leitura, existe uma tendência de restrição criativa e de versatilidade. Toca lindamente, com alto feeling, porém repete muitos licks e se restringe nos estilos. Fica muito ligado ao que ouve com maior intensidade, ou ao que cresceu ouvindo e também tem dificuldade em ser dirigido, como se adequar a um arranjador, produtor, ou maestro.

 

Isso acontece porque quando você escreve o que toca, ou lê muita coisa escrita, é como se você tivesse uma lente de aumento, a subdivisão fica clara, os detalhes ficam claros, e é fácil notar repetições, padrões e também identificar oportunidades. Quando você escreve suas ideias, a partir daquela imagem escrita podem surgir outras que também podem soar bem musicalmente e enriquecer o seu vocabulário. 

 

Muitos músicos usam esse mix de intuição e criação através da escrita e mais teórica. Têm ideias novas vindas da teoria, mas que partiram de uma intuição primária. Olhem o caso do Mike Portnoy que eu citei antes. Procurem vídeos dele gravando com o Dream Theater. Virado em partituras, detalhes escritos. Possivelmente muitas ideias foram executadas e depois escritas, e outras partiram do olhar pra partitura e pensamento teórico. E o resultado é uma música com alto feeling, não é? Muita gente se arrepia ouvindo o Mike Portnoy no Dream Theater e considera o seu sotaque único. 

 

A questão com quem toca excessivamente vinculado a uma partitura é exatamente o oposto. Rola, não uma dificuldade de dar expressão, mas de incluir o próprio sotaque ou de improvisar o discurso.

 

Uma comparação seria pedir para o dublador do Homer Simpson improvisar uma fala ou contar uma piada com a voz do Homer. Pode ser que não tenha graça, que ele não consiga, porque ele é bom na interpretação, adequando o sotaque enquanto lê, e não improvisando o discurso. Faz sentido?

 

Outro problema pode ser a falta de atenção no contexto musical. Com a atenção presa na partitura, pode faltar independência pra conseguir prestar atenção nos outros instrumentos, em como tocar melhor junto e no resultado do contexto musical, deixando a música mais morna, menos expressiva e emocionante. 

 

Então como conclusão de tudo isso, minha opinião é a seguinte:

 

Assim como em todas as áreas, existe hoje uma exigência maior em termos de qualificação, conhecimento e acesso à informação. Então com toda informação disponível, acesso a partituras na internet, programas pra escrever, tudo mais ágil, menos ensaios e também com essa percepção mais clara falada aqui sobre a leitura e teoria, é complicado ignorar essa habilidade.  Até porque talvez você faça parte do grupo que aprende melhor e mais rápido, ou que teria muitas ideias novas através da linguagem musical escrita e nem sabe disso porque não estudou. Então vale essa análise pessoal sobre suas habilidades e suas intenções enquanto baterista pra entender até que nível você deve ir, porém na minha opinião é indiscutível o incremento, a melhora enquanto músico e a abertura de portas sabendo ler e escrever ao menos razoavelmente. Como falado aqui, a leitura e escrita podem estar em diversos pontos: na hora de estudar músicas, em livros, no ensaio, na hora de buscar novas ideias, na hora de executar, no estúdio, em forma de chart, em detalhes na orquestra, etc. 

 

A gente vê muitos músicos usando recursos de áudio similares ao que faria uma partitura ao vivo, os chamados VS, que são trilhas gravadas com metrônomo, às vezes alguns instrumentos e muitas vezes com o próprio músico se dando dicas nesse áudio, como: olha o refrão, vai pro ride, frase em sextina, olha a paradinha. Fica um GPS no ouvido, similar ao que seria visualmente a partitura. 

 

Mas esse é um recurso mais usado pra quem acompanha artistas, com shows altamente formatados, onde também se prefere que o músico tenha um apelo visual sem ficar olhando pra partitura. São casos específicos em momentos específicos e também não é desculpa pra não ler direito. 

 

Em resumo, aprender a ler partituras não é apenas uma habilidade técnica valiosa, mas uma porta de entrada para um mundo musical mais vasto e enriquecedor. Ao investir tempo e esforço nessa habilidade, você se posiciona para alcançar novos patamares como baterista, expandindo seu repertório e abrindo portas para oportunidades musicais mais desafiadoras e gratificantes.

 

Espero que tenha gostado da aula. Grande abraço e até a próxima!